Para que se compreenda a gravidade da situação ocorrida a 24 de Outubro é preciso determinar as circunstâncias que fazem da conjuntura política especial e que, mais do que os actos em si, influencia directamente a crise actual.
Em primeiro lugar, está o facto de aumentarem no país as correntes que acreditam em protestos e manifestações de rua como meios para pôr fim aos poderes instituídos. Apesar da instabilidade decorrente da “Primavera árabe”, há entre as autoridades uma espécie de síndrome instalado, sobretudo quando se aliam partidos políticos e descontentamento popular.
Em segundo lugar, o número de manifestantes transfere uma certa impressão de legitimidade à causa defendida e, neste caso, avolumava e muito o descontentamento social. O impacto da manifestação tem a ver também com a capacidade de chamar a atenção de outras pessoas, do poder público e das redes sociais.
Em terceiro lugar, a confirmação do poder congregador das redes sociais por via das quais se estabelecem conexões e trocas de informações entre manifestantes e a sociedade. São as plataformas das redes sociais online que possibilitam a formação de uma resistência e uma alternativa à força da grande mídia, criando novos protagonistas e também permitem informar o que acontece em tempo real.
Avaliadas estas circunstâncias, a intervenção dos principais protagonistas revelou-se um fracasso, com a Polícia Nacional e a UNITA nos lugares cimeiros. A Polícia Nacional, certamente influenciada pelo tal síndrome, não conseguiu agir de modo cerebral e inteligente, separando o uso da força e a acção violenta. A pressa policial em deter e carregar bastonadas sobre os manifestantes (ou até sobre cidadãos que estejam por perto), acaba, no geral, por minar o próprio trabalho de investigação. A Polícia Nacional tem tido dificuldades em provar que os seus detidos foram os protagonistas da violência e destruição de bens públicos que deram lugar à carga policial. A detenção de líderes activistas sem qualquer histórico de violência em manifestações anteriores, coloca-a numa atitude inconstitucional de impedimento do direito à livre manifestação dos cidadãos.
À luz do impacto nas redes sociais, a UNITA teve uma vitória e os seus militantes aparecem a vangloriar-se disso. Exactamente por ser o único partido da oposição com vocação de poder, ao liderar o movimento reivindicativo, a UNITA abriu uma crise de relacionamento com o partido no poder, por quebrar o compromisso histórico de alternância democrática. A atitude da UNITA alimenta a ideia de que a saída do MPLA do poder é a panaceia para problemas tão sérios como o desemprego, alta dependência do petróleo, paralisação do sector produtivo ou o fraco poder aquisitivo dos cidadãos. Pura demagogia ditada pela ansiedade de chegar ao poder. Como em 1992, quando também tinha uma conjuntura política a seu favor, a UNITA vai acabar por se deixar consumir pela sua própria ansiedade, ao tentar precipitar a derrota do MPLA fora das urnas.
Por sua vez, o MPLA, com a sua já conhecida falta de habilidade em lidar com manifestações e contestação dos cidadãos, também cometeu o erro de conferir valor político à intervenção da UNITA, em vez de assumir o ónus e a necessidade dos sacrifícios de hoje para que amanhã as actuais mudanças estruturais da economia angolana produzam efeito. Entregou de bandeja ao seu adversário político o mérito de interpretar “a vontade do povo” em vez de se explicar e reconhecer ao povo o direito à indignação nesta altura difícil. Acabou como um “meme” nas redes sociais.
E no final da cadeia, o Presidente da República esteve bem em não interferir na decisão dos tribunais sobre a detenção dos activistas. Em tribunal quem ficar provado que esteve envolvido em actos de violência deve ser responsabilizado. São as regras da democracia. Os que nada tiverem a ver com isso, sairão, naturalmente, em liberdade. O Presidente também esteve bem ao condenar a detenção de jornalistas. Faltou-lhe, no entanto, mais firmeza para o diálogo com os partidos políticos e com a sociedade. A conversa com o arcebispo de Luanda e com o ex-líder da UNITA, foram sinais insuficientes. Nessas alturas, o Presidente da República deve assumir-se como o garante da estabilidade, dialogando com todos que se mostrem necessários à manutenção do processo democrático.
Ismael Mateus
Texto do JA