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Angola: Por que a administração norte-americana mantém as “portas fechadas” ao PR João Lourenço? – Raul Tati

Por ocasião da recente viagem do Presidente João Lourenço aos EUA para participar da 76ª sessão da Assembleia-Geral da ONU (21 a 27 de Setembro 2021), ressalta à vista um facto curioso para a opinião pública: apesar das diligências empreendidas pela diplomacia angolana através de um lobby montado em Washington, em 2019, pela companhia americana Squire Patton Boggs, com um contrato avaliado em 4 milhões de USD/ano, a intenção de ser recebido pelo Presidente Joe Biden esbarrou num fracasso.

Segundo alguns analistas não é muito bom para a sua imagem escalar Washington sem a possibilidade de ser recebido na sala oval da Casa Branca. É comparável a uma visita a Roma sem ver o Papa! Como se não bastasse, não é a primeira vez que o PR viaja para os EUA durante o seu consulado sem nunca ter tido um encontro com o Presidente americano.

Com base nestes factos, queria tecer aqui alguns comentários pontuais, à guiza de reflexão, sobre as dinâmicas da política internacional contemporânea e o papel dos EUA naquilo que se passou a chamar por “Nova Ordem Mundial”. A República de Angola estabeleceu formalmente relações diplomáticas com os EUA no pós-guerra fria (Maio de 1993) e apenas com o Governo saído das primeiras eleições de 1992 previstas pelo Acordo de Bicesse (31 de Maio de 1991). Num contexto em que ficava para trás o bipolarismo da Guerra Fria e se impunha um realinhamento da sua política externa, Angola, já com um Governo que inaugurava a 2ª República, decidiu abrir as portas para uma cooperação mutuamente vantajosa com os EUA, facto este que levaria o Presidente José Eduardo dos Santos a visitar oficialmente os EUA, onde foi recebido pelo Presidente democrata Bill Clinton, em Dezembro de 1995, altura em que estava vigente o Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (GURN) com a implementação do Protocolo de Lusaka (20 Novembro 1994).

De recordar que José Eduardo dos Santos já tinha sido recebido a título privado pelo Presidente George Bush a 16 de Setembro de 1991 em Washington. Em Fevereiro de 2002, durante a ofensiva que culminaria com a morte em combate do líder da UNITA, Jonas Savimbi, o Presidente José Eduardo dos Santos foi recebido em Washington pelo Presidente George W Bush. Já em Maio de 2004 voltaria a ser recebido pelo mesmo Presidente americano para discutir os avanços do plano de consolidação da paz e reconciliação nacional, condensado no Memorando do Luena de 4 de Abril de 2002. Desde então são passados dezassete anos desde que as portas da Casa Branca se fecharam para Angola.

Entretanto, as relações com os EUA não são a mesma coisa com as relações com a antiga URSS. Enquanto com a União Soviética Angola manteve relações na base da geostratégia da Guerra Fria e do alinhamento ideológico, por força do regime de tendência marxista-leninista instalado no País, as relações com os EUA estão mais focadas no contexto do novo sistema internacional do qual se tornou principal actor global, já que saiu vencedor da Guerra Fria, tendo assim outras pautas que não aquelas ideológicas.

A Nova Ordem Mundial anunciada pelo Presidente George Bush na ONU, em 1990, estava baseada numa nova parceria de nações. Em 1991, o mesmo Presidente Bush, no rescaldo da guerra do Golfo Pérsico (operação “Tempestade no Deserto”) assegurava ainda na AGNU que «os EUA não têm intenção de lutar por uma pax americana…procuramos uma pax universalis construída sobre responsabilidades e aspirações partilhadas.» Todavia, há um elemento que o Presidente Bush não mencionou no seu discurso e que, do ponto de vista da política internacional, é muito relevante: quando o Presidente Bush falava de uma Nova Ordem Mundial, pretendia dizer que os EUA se afirmavam como hiperpotência mundial e tudo fariam para impedir o surgimento de um novo rival ou potência perturbadora. Essa aspiração está contida num documento do Pentágono (entendido como um draft interno) com impressões digitais do então Secretário da Defesa Dick Cheney e seu Sub-Secretário Paul Wolfowitz, onde está expresso o seguinte: «O nosso principal objectivo é prevenir a emergência de um novo rival (…). A nossa estratégia deve agora recentrar-se em evitar a emergência de qualquer potencial competidor global futuro.» (The New York Times, 1992).

Uma vez que as relações diplomáticas entre Angola e os EUA foram formalizadas no consulado do Presidente Bill Clinton, importa salientar mais ou menos qual era o pensamento estratégico desse Presidente na sua política externa com o foco ao que se designou por New World: a expansão da democracia e do liberalismo económico e comercial, bem como a promoção dos Direitos Humanos e o desenvolvimento de um novo quadro de Segurança Internacional, sobretudo para a África subsaariana, eram aspectos cruciais para a nova cooperação bilateral com Angola.

Foi nesta dinâmica que Angola se torna num dos três principais parceiros estratégicos dos EUA em África, revitalizando a diplomacia do petróleo e outras trocas comerciais. Embora na doutrina os Estados sejam soberanos e a nível da cooperação se evoque o princípio da reciprocidade e da igualdade dos Estados, na prática diplomática as coisas nem sempre funcionam desta forma. Quando se lida com uma potência como os EUA é preciso algum pragmatismo. Não se trata de um parceiro qualquer. Trata-se de uma potência que impõe regras e condiciona o barómetro das suas relações com os estados periféricos a uma série de elementos que configuram o pacote da democracia prêt-à-porterdo qual se fizeram missionários e polícias globais sempre prontos a punir os prevaricadores.

Com essa sua lógica, os EUA não têm hesitado em destruir cidades com os seus temíveis mísseis e derrubar regimes pelo mundo fora, sobretudo com as operações encobertas (covert actions) da CIA, para implantar a democracia, cujo triunfo foi já evocado por Francis Fukuyama (The end of history and the last man).

Um dos grandes problemas da política externa da maior parte dos nossos países africanos em relação ao Ocidente, sobretudo, é o facto de essas relações estarem fundadas num paternalismo inusitado que coloca os países africanos sempre na menoridade e demasiado flexíveis ao smart power das grandes potências e excessivamente dependentes do seu beneplácito. Essa dependência leva as nossas lideranças africanas a assumirem uma atitude de vassalagem diante dessas potências externas com romarias constantes traduzidas em visitas de Estado para prestação de contas aos patrões do mundo. Muitos críticos, como eu, olham para a cooperação com as potências externas como um bolo envenenado, onde as ajudas para o desenvolvimento, através das instituições credoras ocidentais como o BM e o FMI, não passam de um neocolonialismo camuflado em globalismo redentor.

Desta forma, ficamos à mercê das avaliações que fazem sobre os nossos países em relação ao seu desempenho nos processos de democratização e boa governação, nos Direitos Humanos, Liberdade de Imprensa, eleições livres e justas, prestação de contas e transparência, etc. Em tudo isso nós somos avaliados, como alunos de uma escola, através de uma pauta que eles impõem aos países da periferia, cabendo-lhes o poder discricionário de dar o tratamento diferenciado a cada caso. Vejamos, a título de exemplo, que enquanto o Presidente João Lourenço não consegue ainda franquear as portas da Casa Branca nem mesmo com ajuda do lobby instalado nos EUA, o novo Presidente da Zâmbia, Haikainde Hichilema, estava já na iminência de ser recebido por Biden na Casa Branca, não fosse um imprevisto de última hora que levou ao seu cancelamento. Esse imprevisto tem que ver com declarações recentes da vice-presidente da Zâmbia, Mutale Nalumango, contra os direitos da comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgênero). Foi suficiente para cancelar a sua recepção.

Essa atitude da administração americana não é novidade para quem acompanha um pouco a sua política externa. Neste sentido, tendo em conta a sua previsibilidade, a diplomacia angolana e os serviços de inteligência externa (SIE) falharam neste quesito ao permitirem essa exposição prejudicial da imagem do Presidente da República, absolutamente evitável. Hoje toda a gente ficou a saber que era intenção das autoridades angolanas que o Presidente João Lourenço fosse recebido na Casa Branca ou até mesmo no Palácio das Nações Unidas, em New York, à margem dos trabalhos da AGNU.

Infelizmente a sua intenção não teve sucesso, contentando-se com uma agenda marginal e uma homenagem controversa, apenas para envernizar o ego do Presidente, pois, contrariamente àquilo que se diz em relação à defesa do meio ambiente, a reserva natural do Okavango está em perigo desde que o Presidente João Lourenço fez aprovar no Parlamento angolano uma lei que permite a exploração do petróleo naquela reserva transnacional, descurando os impactos negativos sobre o ambiente.

Em conclusão, uma recepção na sala oval da Casa Branca tem a importância que tem no âmbito das relações bilaterais entre os dois Estados. Mas se não acontece não caem necessariamente ´´o Carmo e a Trindade´´. Nenhum Presidente americano já foi recebido na cidade Alta. Nunca foi um problema. Portanto, as nossas lideranças não têm necessidade imperiosa de ir fazer charme na Casa Branca. A preocupação do PR João Lourenço deve ser a melhoria do ambiente político interno, do desempenho económico e da eficácia das políticas públicas para garantir aos cidadãos o bem-estar social. Os indicadores positivos do País irão reflectir-se favoravelmente no ambiente externo.

 

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