Angola: “Protagonistas africanos têm pouco lugar nos programas de História” – Boubakar Namory Keita

Referência no ensino da História de África em Angola, desde a sua chegada ao país em 1984, o historiador maliano Boubakar Namory Keita reflecte, em entrevista ao Jornal de Angola, sobre os desafios do continente. Uma nova independência dos países africanos, diz, é a luta que se impõe, numa referência clara ao desenvolvimento. O actual chefe de Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais da UAN, que já passou pelos ISCED do Lubango e de Luanda, acabando por formar grande parte dos quadros angolanos nas áreas de História e Antropologia, refere que os conflitos em África só têm uma solução: tolerância política e religiosa

Mais de uma década depois da publicação de “História da África Negra”, referência para os estudantes universitários em Angola, que falhas ainda persistem nos programas de História de África?

Acho que são, na realidade, duas perguntas numa só. Ou seja, colocada deste modo, parece estabelecer uma relação entre, por um lado, a obra em referência e, por outro, os programas de formação em História no nosso país. Na realidade tentei fazer uma síntese, a mais esclarecedora possível, da História política e das civilizações da África Negra para os estudantes do Ensino Superior (é bom que se sublinhe isto!). Dei conta que se atingiu uma grande parte dos objectivos do empreendimento porque provocou e continua a provocar um certo entusiasmo no seio deles, e não só. Têm, de facto, a possibilidade de obter uma visão um tanto quanto global e fidedigna (sem aquela abordagem, classicamente, eurocêntrica) do passado e percurso histórico do continente. Os estudantes encontraram uma boa síntese dos principais problemas de metodologia da investigação da história, de modo geral e da África negra, em particular. Tentamos explicar qual o lugar de África na génese e evolução do Homo Sapiens. Porquê África é o berço da Humanidade? Como compreender a génese e a essência da civilização do Egipto antigo, sublinhando o perticular papel do Egiptólogo Cheikh Anta Diop (senegalês) neste processo. Assim, o estudante angolano e africano quebra uma persistente corrente de alienação, para assumir a sua plena plenitude cultural baseada numa consciência histórica reencontrada. Ao terminar com a análise da chamada Idade Média africana, a obra propõe uma leitura sobre o conceito “África pré-colonial”, uma História endógena dinâmica; o fim de mais um mito na Historiografia. Por tudo isso, trabalhamos sobre uma versão revista, actualizada e enriquecida que está a ser analisada actualmente por uma editora local.

E quanto às falhas nos programas…

Agora, e falando dos programas de História, tocamos uma outra dimensão das nossas preocupações: dos Ministérios de Ensino Superior, de Educação e do Departamento de História. Para resumir as “falhas”, como diz o Micolo, persistem em muitos aspectos. Aliás isto não é de admirar. Do meu ponto de vista o objectivo final é de assegurar e aprofundar, cada vez mais, esta “consciência história” a que fiz referência e que possa proporcionar ao jovem africano a profunda convicção de ser parte integrante do processo histórico universal, ou de ter participado activamente no advento da civilização universal (o que lhe foi negado durante décadas, desde o Tráfico de escravos negreiros e reforçado pela colonização europeia). O desafio é enorme, sobretudo depois de um período alienador como a colonização europeia. Herdámos de um sistema de educação (e não apenas!) que, além das consequências clássicas, nos impossibilitou de assumir plenamente um verdadeiro renascimento de África. Aproveito para lembrar que o Ministério de Ensino Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação (MESCTI) está engajado, concretamente desde o ano passado (2020), num processo de harmonização dos Planos Curriculares de formação em licenciatura, em todas áreas de conhecimento. É a oportunidade soberana de erguermos, finalmente (!) um corpo de saber que corresponda realmente a nossa cosmovisão, assegurando de facto um desenvolvimento sustentável do nosso país e de África. Penso que, assim iremos minimizar as falhas a que faz referência.

Mas como desenvolver uma educação transformadora, se as realizações africanas e os seus protagonistas não estão reconhecidos nos manuais?

Concordo consigo quando diz que a Educação – lato sensu – tem uma função fundamentalmente “transformadora” e, acrescento, no sentido positivo, isto é,  na perspectiva do desenvolvimento integral da sociedade. Não pode ser de outra maneira, sobretudo quando interpelamos as tradições africanas. Amadou Hampâté Bâ é uma dessas célebres figuras africanas que nos ajuda entender bem isto. Nos ensinamentos que ele nos legou a educação sempre foi integral, abragente em África profunda. Aliava o saber e o saber-fazer, mesmo quando for revestida de um carácter esotérico (por causa da sua dimensão profunda!). Ela, assim, se baseava precisamente e de maneira obrigatória, nas realizações individuais e colectivas que eram transmitidas deste modo de geração para geração. Para dizer que tinhamos, aqui, os “manuais” sob forma de memória. Um dos desafios da educação moderna (actual!) em África parece-me ser justamente o de se apropriar, de maneira adequada, dessas exigências.

Era uma das falhas a que me referia…

Olhando para esta sua pergunta sob outro prisma, posso dizer que uma das “falhas”, acima refenciadas, dos programas de História pode ser esta: pouco lugar reservado às realizações endógenas e dos seus protagonistas nos nossos actuais manuais. Quero lembrar também o relativo silêncio da parte das Entidades oficiais pelo financiamento desses materiais em torno de eminentes estudiosos africanos em Fiosofia, História, Linguística, Antropologia, etc., pela simples razão que “incomodam” os antigos mestres. O exemplo típico de Cheikh Anta Diop que continua, até certo ponto, desconhecido dos jovens do Ensino Geral e de muitos (ainda) do Superior. Na verdade, este fenómeno é muito mais complexo e mereceria uma abordagem especial. Toca a problemática da alienação ou das sua sequelas ainda visível no seio da intelectualidade africana.

  “O essencial do e para o desenvolvimento ainda permanece nas mãos das ex-potências colonizadoras”

Sabemos que o senhor pretende lançar pela editora brasileira Ancestre a obra “História da África Negra: colonização, lutas de libertação e independências”. Em resumo, que reflexões levanta esta obra ao nível da Historiografia?

Como jornalista, o senhor está bem informado! O lançamento deve acontecer se possível, no fim deste mês. Não podendo deixar de responder a sua pergunta, poderia propor alguns extratos do prefácio (efectivo) elaborado pelo Dr. Washington Nascimento, professor de História da África na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil). Embora seja muito difícil (como representante da cultura mandinga) falar de si próprio, diria que: “A obra tenta introduzir o leitor aos grandes temas resultantes do contacto entre a África e a Europa [que resultou na colonização e as consequentes lutas pela independência]. Propõe uma leitura endógena (africana) à luz da recente historiografia produzida dentro do continente. O diálogo dá-se em referência particular a autores como Cheikh Anta Diop, Joseph Ki-Zerbo, Elikia MBokolo, Olotounji e o senegalês Abdoulaye Sadji que construíram um método de pesquisa observando os fenómenos [históricos] a partir do continente africano. Neste sentido a influência de Diop é crucial para a construção teórico-metodológica do livro. Era necessário fazer lembrar que ainda faltam obras que discutam estes processos a partir de uma dinâmica interna própria, recuperando assim uma crítica feita pelos autores e organizadores da História Geral da África (Unesco, 1970). Recuperar a voz e a perspectiva africana é um dos principais êxitos deste livro recordando, para o efeito, Cheikh Anta Diop quando este sublinhou a necessidade de reconciliar o negro-africano com a sua história, e isto sem subjectivismo e tendência de “negrificação” à todo o custo. Mostrando densidade nos processos que analisa, o livro destaca que a colonização europeia do continente não foi um “acaso” nem “acidental”, mas sim o resultado do desenvolvimento socioeconómico interno à Europa (a Revolução industrial). Resultou naquilo que se mostrou ser uma “negação e destruição dos funsamentos identitários dos povos africanos. Realça também as implicações práticas dos discursos em torno das chamadas “independências negociadas” e as “conquistadas” para os atuais estados-nações africanos, evidenciando o quanto o colonialismo voltou a se fazer presente (!) e de que forma a “saudade” do tempo colonial em alguns estratos sociais no continente é uma praga a ser resolvida”.

O que é que correu bem e mal nas independências?

O que leva o senhor a este questionamento? Porquê algo deveria correr “mal” ou “bem”? As independências constituíram o coroar de processos, na realidade, muito complexos com vários protagonistas – quer internos ou autóctones quer externos como as Metrópoles colonizadoras representadas por brancos residentes diversamente ocupados. Primeiro, considerando os protagonistas autóctones, aparece claro que o processo era marcado pela vontade de reaver as soberanias perdidas, de pôr fim à dominação e exploração. A colonização, de recordar, foi um fenômeno de negação dos fundamentos identitários de povos dominados. Daí o engajamento de todos os representantes destes, a diferentes níveis, com o que chamaria de “elites”, nomeadamente Elite tradicional (educada ou letrada ou não); Elite formada, cada uma tendo tecido laços diferenciados (de aliança) com o Estado colonial. Muitas vezes os interesses das duas categorias não coincidiam face ao conteúdo da emancipação e, mesmo, da independência do território colonizado. As Administrações coloniais jogaram muito com esta situação, chegando em alguns casos criar e manter “conflitos” entre elas.

Um processo complexo…

Do lado da Administração colonial ou dentro dos Territórios, a evolução provocou clivagens sérias entre classes de colonos, agora com a sua própria perspectiva em relação ao futuro e o Estado colonial. A consequência de tudo isto foi de dar ao processo de independência um carácter bastante complexo (casos do Quénia/Kenya; das Rodésias, por exemplo).  Na verdade a problemática das “independências negociadas” e das “independências conquistadas” toma a sua génese neste cenário. De qualquer modo, para entendê-la e proceder á uma análise histórica e objectiva ela tem que ser enquadrada nesta situação que viveram muitos territórios colonizados. Penso que só assim podemos compreender eventualmente a sua pergunta. Se não, rigorosamente falando nada pode ter “corrido mal ou bem” nas independências. Uma independência em si foi uma coisa boa, positiva, indispensável e o que deveria acontecer do ponto de vista histórico e político. O questionamento é, geralmente, feito para subentender algo parecido com: “será que a África estava pronta para a independência”? E que a verdade se diga, isto devido a situação dos países independentes, desde 60 anos: sem desenvolvimento, com graves problemas nos sectores da Educação, da Saúde, da Segurança, da Gestão territorial, etc. A tentação é, de facto, perguntar: por que ter lutado para aceder à independência para continuar a manter as populações na miséria. Ou por que razões os líderes que conduziram as lutas de independência fracassaram em promover ou satisfazer os ideais destas?

É exactamente isso!…

Desde que o Continente “mal arrancou” (Réné Dumont disse “L´Afrique noire est partie”, em 1967 – numa célebre obra) tudo parece que, efectivamente, “Ele recusa o desenvolvimento” (segundo a, então, jovem socióloga camaronesa Axelle Kabou – num também brilhante Ensaio intitulado: “Et si l´Afrique refusait le développement”). Por outras palavras, digo que são legítimas perguntas para explicar: a África do subdesenvolvimento económico; a África no eterno processo de construção de Estados democráticos e de direito; a África da corrupção e do nepotismo; a África dos sistemas de educação e de saúde precários; a África dos conflitos armados, etc. Podemos, evidentemente, tentar ajudar a esclarecer alguns aspectos como reconhecer que o essencial escapa ao entendimento objectivo.
Deparo-me, cotidianamente nas minhas aulas na Faculdade, com perguntas angustiantes dos estudantes em que fico impotente de dar respostas fora do âmbito histórico.

Certamente que é isto o senhor resumiu perguntando: “o que correu mal nas independências”. Para não cansar mais,  bem gostaria de recordar uma conclusão do antropólogo britâncio e um dos fundadores do Funcionalismo, Bronislaw Malinowski. Dizia: “se um dia o civilizado (entender o colonizador) decidir entregar a chave que abra as portas do desenvolvimento ao primitivo (entender o colonizado), mesmo por oportunismo (quando se sentir obrigado!), o fará de tal maneira que o essencial dos assuntos fique em suas mãos”.

Acho que esta conclusão, dada ainda antes do fim da colonização, resume perfeitamente o que o nosso continente vive, desde as independências e, ainda mais hoje. Se analisarmos profundamente e sem complacência o percurso da África e a actual situação, deveremos ser capazes de reconhecer que este “essencial” do e para o desenvolvimento ainda permanece nas mãos das ex-potências colonizadoras. Assim o desafio continua ser: a luta por uma nova independência!

“Temos um desenvolvimento que não reflecte a nossa cosmovisão”
É por isso mesmo que Ngoenha e Matumona, dois conhecidos filósofos de África, defendem que os processos das independências não são traduzidos na prática, pois não reflectem os verdadeiros ideais dos povos africanos, sendo apenas “ponto de partida” para tal.

Há pouco falei da complexidade dos processos de independência. Primeiro é pertinente de facto utilizar o plural, não só para sublinhar a diversidade das formas concretas das géneses, do desenrolar, dos niveis de preparação das Elites, de resposta dos povos neste ou naquele território. Como também traduz as diferentes reacções dos Estados coloniais: britânico, alemão, belga, francês, português.

Portanto, sou de extrair do pronunciamento dos filósofos Ngoenha e Matumona, dois momentos que me parecem relevantes: a) os processos de luta pelas independências e b) os ideais (das lutas ou dos povos?). É interessante anotar aqui com força que os processos de luta pelas independências (me parece mais acertada esta longa expressão) começam aquando da penetração europeia, continuando na fase das tentativas de ocupação e finalisando com a exploração colonial propriamente dita. Cada uma dessas fases com as suas particularidades e suas consequências. A última introduziu uma nota especificamente importante que foi o surgimento e consolidação da consciência nacionalista – condição sine quo non para o derrube do sistema colonial. Foi o momento da génese do pensamento político africano, um fenómeno extraordinariamente interessante. Pois é nesta fase que a Elite “nacionalista” africana (com a tradicional e a formada, como referenciado antes) vai demonstar uma capacidade inédita de absorpção, de assimilação e de adaptação de novas ferramentas de luta como as disposições jurídico-legais pensadas e introduzidas na reorganização dos Estados e sociedades modernos da Europa do início do século XX.

E o que pensa hoje sobre isso?

Tenho a impressão que as Metrópoles ocidentais queriam pôr à prova a capacidade real dos africanos ao levarem para as colónias essas novas ferramentas (Leis de Imprensa; Leis sobre a libertação de expressão, de reunião) que hoje constituem a base dos fundamentos democráticos modernos. Espantosamente (para o europeu), o africano começou a constituir diversas Associações: de defesa das línguas nacionais e/ou de universalização do Ensino de base; de carácter cultural; de natureza socio-profissional ou sindical e, finalmente, de reivindicação política. Sim, nascem a partir deste momento Sindicatos e Partido Políticos como maior expressão de reivindicações capazes de pôr em causa os fundamentos da ordem colonial. É o periodo de maior interiorização das ideologias ou doutrinas coloniais de administração para um adequado contrapeso. Com efeito, todos os grandes Partidos políticos tradicionais que levaram os territórios para independência datam dos anos 30 e 40 do séc. XX!

…E surgem as ideias de libertação!

Com esses Partidos e Sindicatos, concretiza-se a elaboração dos ideias de libertação e dos modelos de desenvolvimento pós-independência. Com eles vai-se tentar traduzir concretamente os anseios dos povos dominados, colonizados e explorados. Este momento também me parece muito importante pois mostra Elites nacionalistas mais proxímas das populações, mais patriotas, menos egoistas – todo o contrário daquilo que se observa hoje. As acções para concretizar esses ideais constituiam, na minha opinião, uma espécie de “programa mínimo”, consubstanciado no fim da ordem colonial, no derrube do Estado colonial. Já neste processo as Elites mostraram uma extraordinária capacidade de discernimento entre a “confrontação armada” e a “negociação política” num mundo de domínio do Capitalismo ferroz (na sua luta com o Sistema Comunista nascente). Tentaram também a experimentação de uma “via africana” de desenvolvimento socioeconómico (Socialismo africano). No clima criado por esta confrontação, existiam poucas condições para avançar com segurança na viabilização do “Programa maxímo”.

Esses autores africanos partem da observação segundo a qual a economia hoje comanda o mundo, de tal modo que assim são mensuradas as sociedades pelo seu nível de desenvolvimento técnico-material. Como podemos partir para uma perspectiva de desenvolvimento endógena que reflicta a nossa cosmovisão?

Acho que é preciso clarificar, aqui, alguns conceitos para ver se compreendi o seu pensamento. Primeiro, as preocupações económicas sempre comandaram as sociedades humanas, o mundo. Acho que é simples entender isto, já que o anseio final do homem é o seu bem-estar material e (depois) espiritual. Os mandingas (da África Ocidental a que eu pertenço) dizem que a “Cozinha é mais antiga que o Templo/Igreja/Mesquita”. A Cozinha simbolizando a Barriga que tem que estar “cheia” primeiro para poder trabalhar. Trabalhar significa produzir e posso dizer sem medo de errar que todas as actividades do homem estão, directa ou indirectamente, dirigidas para a satisfacção das suas necessidades de vária ordem. Em Antropologia encontramos essas ideias, modernamente (já existiam na tradição negro-africana!) sistematizadas com os Funcionalistas.
Hoje a actual fase de desenvolvimento do Capitalismo que é o Liberalismo ergueu o “Mercado” de tal modo que ficou praticamente santificado, divinizado. Tudo deve obedecer ao Mercado. A evolução para atingir essas exigências permitiu, de facto, termos sociedades com alto nível tecnico-material (simplesmente bem desenvolvidas). E, aqui está a segunda preocupação, lidar com o Mercado, satisfazer as suas necessidades é só a partir de critérios, regras universais.

Exactamente….

No entanto esta universalidade não exlui a “endoginia”. Não podia e não pode ser de outra maneira uma vez que o desenvolvimento não é abstrato: ele é dirigido, constituindo o quadro de e para bem-estar dos mulheres e homens. E esses apresentam necessidades particularidades cuja satisfacção passa por uma perspectiva endógena. Eu não me alimento de macaroni e de pizza. Logo não posso gastar recursos intelectuais e físicos em cultivar trigo. Vou concentrar essas energias em produzir, por exemplo, mandioca e feijão (!). Da mesma maneira, é absurdo e contraproducente ficarmos atrelados aos “conselhos” de Organizações como o FMI e estar sempre à espera da “ajuda” do BM. Joseph Ki-Zerbo, o eminente historiador burquinabe, dizia: “Não se deve e pode dormir na esteira do outro permanentemente” ou ainda “Ninguém desenvolve (o outro). Mas cada um se desenvolve”. Acho que uma boa parte da Elite africana ainda não entendeu isto, senhor Micolo! Isto responde, em parte a uma das suas perguntas: a saber o que terá corrido mal nas independências. Reformularia de outra maneira: “O que está a correr mal na evolução positiva do pós-independência”?

E qual seria a resposta?

E a resposta seria: não temos conseguido interpretar bem o que o antropólgo e conselheiro do Ministério do Colonial Office britânico, Malinowski disse, e que já lhe falei atrás. E não continuarmos a entender ou aceitar o que Ki-Zerbo disse recentemente. Quando atingiremos esta proeza, teremos um desenvolvimento numa perspectiva endógena e reflectindo a nossa cosmovisão, como você disse.

“As actuais elites estão com sérias dificuldades em levantar os seus respectivos países”

Há uns anos, o professor assumiu em entrevista ao Jornal de Angola, desilusões de gerações anteriores e exortou a juventude a “mostrar capacidade de se levantar, apesar dos problemas com que se debate”. Tem notado alguma esperança nas gerações do pós-independência?

Como historiador, irei dividir o pós-independência em dois periodos, em termos de esperanças, de desilusões e de capacidades de se levantar e ajudar a contruir o continente:
– A geração das independências, que podemos facilmente encontrar numa Organização estudantil como a FEANF (Federação dos Estudantes da África Negra em França). Estava animada por jovens tais como Cheikh Anta Diop, Aimé César, Alpha Condé (actual Presidente da Guiné Conakry), Laurent Gbagbo, etc. Pesaram muito sobre a acção dos seus mais-velhos na luta anti-colonial, nas Metrópoles europeias.  Viram a sua esperança a transformar-se em desilusão nos anos 80 das inde-
pendências. Mas era uma geração politicamente culta, com uma consciência suficientemente aguda das suas responsabilidades. Tinha uma clara percepção dos fenómenos e dos desafios que se apresentavam ao continente. A geração que se seguiu, sem grande referência devido a uma ruptrura com a anterior. Uma geração acompanhada por uma nova Elite política. Embora intelectual e tecnicamente bem preparada, estava mais comprometida com o mundo do Capital internacional que estava preste a terminar a definitiva submissão do continente. Assim sendo, esta Elite inicia o actual ciclo de uma África dos colarinhos brancos ou, segundo a feliz expressão de João Lourenço e para uma melhor compreensão dos angolanos, dos  “marimbondos”.

E onde está o problema?

Analisando seriamente a génese, a estructura psico-mental, o alto nível da sua formação tecnico-profissional e a natureza dos seus laços com os círculos do Capital internacional decididos em controlar o mundo, não me parece haver dúvida que esta Elite representa o maior perigo para o desenvolvimento efectivo de África ao serviço das suas populações. E é ela que, hoje, serve de referencial à Juventude ou à actual geração. Vai tomando conta do imaginário desta sobre o futuro. Na vida real os jovens, ao exteriorizarem a sua legítima frustração, o fazem contra os Estados e sem discernimento, misturando críticas contra a má gestão global, a corrupção, o clientelismo, a monopolização das riquezas nacionais por grupos, na realidade, de marimbondos (por serem justamente aqueles que gostam de ostentação). Tudo isto mostra claramente que esta geração tem sérias dificuldades em atingir aquela maturidade indispensável para o assumir de uma cultura política que lhe permita ajudar levantar os seus respectivos países. Enquanto a actual, e mesmo a futura geração coabitar com esses elementos e dentro de Estados dominados por representantes deles, vai ser difícil nutrirmos esperança!

Os conflitos armados persistem em África e afectam mais de 100 milhões de africanos. Além de causas como a exploração dos recursos naturais e conflitos étnicos, ganha cada vez mais espaço o terrorismo de causas radicais. Há algum exemplo ao longo da história do continente que nos possa dar lições de como resolver estes problemas?

Não sei se este número reflecte a realidade. Olhando para as suas repercussões; directas e indirectas, acho que deve ser muito mais. Os conflitos actuais são, por essência, de carácter político e étnico sob forma armada e/ou não violenta. Quero, com isto, dizer que eles aparecem geralmente como consequência de desentendimentos pela “partilha” do poder, agudizados através, por exemplo, de consultas populares devendo legitimar a posição de uns ou outros. É a expressão mais visíveis porque temos ainda muitos outros factores que concorrem para tal fim. Assim conflitos, originalmente políticos podem tomar formas violentas e mesmo desembocar em desentendimentos étnicos, forma relativamente rara em África apesar de a literatura internacional apontar mais para ela. O continente conheceu e conhece muitos conflitos desde as independências, e os de origem e de carácter étnico afiguram-se muito poucos. Os actuais conflitos violentos eclodiram como de reivindicações de carácter político, mesmo se neles predominam ou lideram determinados grupos étnicos: na banda sahelo-sahariana (Mali, Níger); no Tchade; no Sudão; na Nigéria (onde, pela primeira vez, o fermento religioso finalmente interveio). Alguns (poucos) mantêm-se por fomento a partir do exterior, como no Ituri (Leste da RDC).

E não há exemplos como modelos…

Na minha opinião, não existêm exemplos que possam nos indicar vias concretas específicas de resolver o problema dos conflitos. Ou seja não existem “modelos” de resolução. A solução está apenas na tolerância política e religiosa que deve ser, obrigatoriamente, incentivada, cuidada ou velada por poderes atentos ao essencial, a saber o desenvolvimento real do país. Eu acredito mais nisso; poderes, efectivamente preocupados e empenhados em resolver os problemas do desenvolvimemto não podem criar condições de descontentamento de povos ao ponto de obrigar uns a virar as costas às actividades produtivas e criadoras. Serão poderes nacionais, patrióticos, verdadeiramente “africanos”. Quando falo disto, a tendência é de perguntar: o Rwanda, a partir de 1994? A África do Sul, a partir de 1994? Angola, a partir de 2002? O Sudão, em 2015?

E o que responderia?

A resposta é: a tolerância política. A única minha preocupação nesta perspectiva diz respeito aos casos onde o “Radicalismo relgioso” tomou conta do fenómeno, com actos de “terrorismo” que não conhece nenhum limite de ordem étnica, cultural endógena nem territorial nacional (casos, ao meu ver, dos Al-Shebab, na Somália; do Boko Haram na Nigéria; na Zona sahelo-sahariana e concretamente no Centro do Mali, Oeste do Burkina Faso e no Níger; Norte de Moçambique). Aqui também a África deve agir em comum; unir as sinergias para fazer face ao desafio. Isoladamente será impossível e o mal irá alastrar-se a, cada vez mais, países. Enquanto persistirem esses conflitos não haverá paz verdadeira e duradoura no continente.

 

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