ENTRE SODOMA E GOMORRA: “UM ARRUACEIRO DESTAPANDO ÀS CONFIDÊNCIAS DE NAICE ZULU E BC”

“Todo equívoco humano é satirizável. Enquanto houver ser humano com suas carências, inseguranças e dúvidas, haverá sátira.” Ziraldo.

A arte é um fenómeno humano derivado da relação do homem com o seu contexto físico, social, político e cultural, podendo ser vista como mediação para compreender a vida em diversos âmbitos. Nesta linha, a música, como qualquer expressão artística, deve ser compreendida como uma actividade humana colocada em um determinado contexto, onde se torna possível ponderar a sua especificidade enquanto um processo, uma forma de sentir e pensar, capaz de criar emoções e inventar linguagens.

O estilo musical Rap, particularmente, funciona como um instrumento de comunicação para poder tornar os problemas das comunidade e suas histórias visíveis. Não foram em vão as afirmações de Gangsta “Os rappers representam […] uma continuidade da tradição da oralidade que permeou às relações culturais de seus ancestrais na África Ocidental”, motivando com que eles fossem considerados “os griots da modernidade” (LAC/RC 2017).

O álbum é confidencial, surge num período muito peculiar da história e da política nacional, com a eleição de João Lourenço para presidente da República de Angola, volvidos quase quatro décadas do reinado dos Santos, há por um lado a transição do poder e, noutro lado, com o novo chefe de estado surge alguns indícios de alguma liberdade de expressão a todos os níveis e algumas «reformas». É nesse período que Naici Zulu e BC, em 2019 fazem brotar o álbum “É Confidencial” que comporta 12 (doze) músicas.

O dicionário online de português língua portuguesa, explica-nos que a palavra confidência significa comunicação secreta; segredo confiado; confiança. Naici e BC com um discurso satírico, trazem temáticas sociais (novas e antigas) que no tempo da velha senhora se constituía tabu, como podemos ouvir na faixa de abertura “Óh Camarada” parecem-nos ser o intróito dos vários assuntos que se desenrolam ao longo faixas que se seguem, tais como: os conflitos e a falta de ética dos músicos, a corrupção, a política, o trabalho da imprensa, os problemas socais e o desempenho dos políticos.

“O objectivo principal do rap é consciencializar e informar a comunidade da sua realidade e do espaço que ocupa na sociedade, assim como fornecer dados para que o povo possa reverter situações com as quais não estão satisfeitos.” (Andrade, 1999, p. 23). Na música Zejoão, percebe-se a ruptura da linha governativa entre Zé – Executivo e João – Executivo.

[…] Óh Zé o que fizeste não gostei nada

Nos cofres do estado não encontrei nada

O desfalque foi profundo, desvio soberano

Tu, o Sobrinho e o teu Filho Filomeno.

Eu é que não gostei nada do teu discurso em Portugal

O líder não pode ser rabugento, cai mal

Queres combater a corrupção, justifique os teus pertences

Chamaste marimbondo a um grupo que também pertences […]

A transição presidencial no seio do partido EM PÉ LÁ não se inscreveu em directrizes pacíficas, às discussões e acusações entre o presidente João Lourenço e o emérito presidente José Eduardo dos Santos sobre a actual crise económica e social que levou o país à UTI, reflecte isso. Por um lado estão os acólitos de Lourenço e noutro lado os acólitos dos Santos, pseudenomizados de marimbondo. Marimbondo (faixa 6 do álbum) é um novo termo veio enriquecer o nosso léxico quotidiano, proferido por João Lourenço. Naici Zulu e BC concebem o marimbondo como o animal selvagem mais sanguinário entre todos os animais que peripatam à face da terra, cuja apetência alimentar reside nos bens públicos:

[…] Xé! Os maribomdos são mais perigosos então

Eles num loubam ngalinha, loubam educação

Comem o teu salálio prossora, comem alacatrão

[…] Sumiram com o avião, satélite somem à toa

Se eles próprios se somem e depois se culpam.

Os rappes mostram que os marimbondos constituem o maior mal que destruiu os sonhos de milhões de angolanos e que enguiçou Angola num desenvolvimento de cágado. Volvidos quase um século de governação Neto-João-Zé, ainda nos deparámos com os problemas que trazem às águas de Abril (faixa 4) e os inúmeros problemas básicos que se perpetuam.

Naici Zulu e BC propõem que os nossos problemas sociais, políticos e económicos sejam mais discutidos; que a realidade seja vista em seus problemas, para que às necessidades de transformações sejam percebidas e para que se compreenda que a forma preconceituosa, injusta e desigual na sociedade não devem existir. “O estilo RAP estimula o jovem a reflectir sobre si mesmo, sobre seu lugar social, ao mesmo tempo, cria uma forma própria de o jovem intervir na sociedade, por meio das suas práticas culturais. (Dayrell, 2005, p. 61).

A música impaciente no kimbanda (faixa 11) é um caso paradigmático da insipidez em que se assenta o nosso sistema de saúde, levando várias pessoas a buscarem soluções de curas e milagres no charlatanismo:

Avô Fuidimuike

Trouxe o meu tio que esta mal

Já fui no hospital mais não deu certo

Agora trouxe aqui no avô para ver se ele tem quê?

Tens tudo

Olho grande, mau olhado, bicho virado,

febre amarela, febre vermelha, febre arco-íris

o teu testículo esquerdo quero que tires. […]

Nessa faixa procura-se discutir os problemas que enfermam o nosso sistema de saúde, desde a falta de recursos humanos, técnicos e matérias, constituindo um dos principais factores que levam muitas famílias a aderirem às supostas curas milagrosas que os kimbandas prometem dar, levando muitas vezes à morte dos pacientes. Pelo carácter textual de Naici Zulu e BC, parece-nos terem uma personalidade que se auto – direccionam (Busca de objectivos de curto prazo e de vida coerentes e significativos; utilização de padrões internos de comportamento construtivos e pró – sociais; capacidade de auto – reflectir produtivamente. DSM-5, p. 806). Temáticas como kimbwados (faixa 9), criselândia (faixa 10), mbimbinha (faixa 12), são exemplos das várias reflexões sociais que Naizi Zulu e BC colocam em debate.

Portanto, “É Confidencial” é um álbum de Rap que propõe o exercício de leitura da realidade social, politica, cultural e económica de Angola, vale apenas degustá-la.

 

Fernando Dhyakafunda

FreeMind FreeWorld.Org

Bibliografias passivas

Andrade, E. (1999). RAP e educação. São Paulo.

Dayrell, J. (2005). A música entra em cena: o funk e o rap na socialização da juventude. B. Horizonte.

Gangsta. A música angolana hoje. Entrevista LAC – Programa RC, 2017.

Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais – DSM-5, 5ª edição.

 

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