Amparados no Decreto Presidencial 69/21, Juízes e Procuradores estão a “abocanhar” a parte que julgam caber-lhes no âmbito do processo de recuperação de activos construídos com fundos do Estados.
Segundo o Correio Angolense, há relatos de que apartamentos residenciais e até mesmo de escritórios nas chamadas Torres A, B, C, recuperadas a antigos responsáveis da Sonangol, já passaram para a esfera privada de procuradores e juízes. Outros imóveis recuperados no âmbito do combate à corrupção são distribuídos gratuitamente a instituições públicas. Nuns e noutros casos, não há qualquer contrapartida para os cofres públicos.
Confiado inicialmente à guarda do Cofre Geral da Justiça, na qualidade de fiel depositário, o Serviço Nacional de Recuperação de Activos da Procuradoria Geral da República acaba, agora, de dar destino definitivo a parte substancial do património móvel apreendido ao empresário Carlos de São Vicente.
De acordo com a fonte, um despacho de Eduarda Rodrigues, directora do SNRA, de 17 de Fevereiro, ordena que sejam afectados ao Ministério da Saúde os três edifícios denominados Mboque, sitos à avenida 21 de Janeiro, ao Morro Bento, em Luanda. São destinatários dos referidos imóveis o Instituto Nacional de Oftalmologia, o Instituo Nacional do Sangue e o Instituto Nacional de Emergências Médicas de Angola (INEMA).
No mesmo despacho, a procuradora Eduarda Rodrigues ordena que seja afectado ao Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos o edifício sede das AAA, situado à avenida Agostinho Neto, para nele serem instalados a Direcção Nacional de Identificação, Registos e Notariado e seus serviços externos.
O Guiché Único das Empresas também tem aval para ser acomodado naquele edifício. Eduarda Rodrigues estabelece, porém, que a afectação do edifício ao Ministério da Justiça não deve perturbar o funcionamento da Fundação Agostinho Neto, que tem sede no primeiro andar desse mesmo imóvel. A PGR não teve a mesma atitude em relação à Torre CIF Two. Ali, ela ignorou a propriedade privada existente.
Nos termos do despacho, o antigo Centro de Sinistros das AAA, também à avenida 21 de Janeiro, é afectado ao Arquivo Nacional e Serviços Externos da Direcção Nacional de Identificação, Registos e Notariado.
Na operação de “divide e reparte” promovida pela Procuradoria Geral da República, ao Tribunal de Contas coube ao edifício das AAA situado à Avenida Lenine.
No despacho, a directora do SNRA alega que a afectação dos imóveis foi precipitada pela constatação de indícios de degradação e deterioração.
Se Eduarda Rodrigues se tivesse guiado pelos mesmos critérios, escreve o jornal dirigido por Graça Campo, milhares de apartamentos e vivendas na Vida Pacifica, Kilamba e KK 8000 teriam sido poupados da deterioração e da destruição intencional.
No Decreto 69/21, o Presidente da República estabelece que só há lugar a comparticipação partilhada dos resultados da luta contra a corrupção quando o activo for perdido a favor do Estado “mediante decisão condenatória”.
Carlos São Vicente, antigo presidente da empresa AAA, foi detido em Setembro do ano passado por indícios de cometimento de crimes de peculato, participação económica, tráfico de influência e branqueamento de capitais.
Depois da sua detenção, as autoridades angolanas enviaram cartas rogatórias às suas congéneres de Portugal e Luxemburgo a pedir o congelamento das contas e bens do empresário. Carlos São Vicente sempre alegou inocência.
No dia 22 de Março, o Tribunal Federal Suíço ordenou o descongelamento de uma conta bancária do empresário luso-angolano com mais de 900 milhões de dólares. Numa decisão, a Corte Suprema Suíça instou a Câmara de Recurso do Tribunal de Justiça de Genebra a fundamentar melhor o arresto dos 900 milhões USD de Carlos São Vicente alegando que os indícios de lavagem de dinheiro não foram suficientemente fundamentados.
Carlos Manuel de São Vicente pode ser julgado em breve, depois de concluída a fase de instrução preparatória.
Ainda sem julgamento – e, portanto, sem decisões transitadas em julgado – a afectação do património imobiliário de Carlos São Vicente reflecte alguma precipitação das autoridades judiciais. Uma eventual reviravolta judicial causaria sérios embaraços às entidades a quem estão a ser distribuídos os imóveis.
A Procuradora Geral da República parece ter um “carinho” muito especial pelo património imobiliário das AAA.
Em 2018, convenceu o Presidente da República a autorizar uma despesa de 20.500 milhões de kwanzas para a compra de um edifício da AAA onde estabeleceu a sua sede.
A bilionária compra foi justificada com a necessidade de melhorar as actividades atribuídas à PGR.
Antes de distribuir gratuitamente o espólio das AAA, a Procuradoria Geral da República já havia feito o mesmo com as conhecidas Torres CIF One e CIF Two, à Avenida 10 de Dezembro. Nesse caso, o beneficiário foi o Ministério das Finanças, cuja sede, apesar de estar quase permanentemente em obras – é o que sugerem os tapumes que o envolvem – , aparentemente não consegue instalar condignamente todas as suas dependências.